Violência e vácuo na legislação: ‘O Judiciário ainda é hesitante em condenar o racismo’

932

“Precisamos entender que o racismo não acontece apenas quando chamamos alguém de macaco.”

A defesa da igualdade racial e da valorização da negritude, para alguns, podem ser consideradas como tensões já resolvidas no Brasil. Porém, somente neste ano, pelo menos duas histórias que ganharam repercussão nos mostram que a Justiça e a sociedade ainda hesitam em condenar o racismo.

Em abril deste ano, Dandara Castro foi a uma festa de formatura vestindo um turbante. Em determinado momento do evento, um grupo de rapazes se aproximou da moça e começou a puxar o adereço de sua cabeça. Ela pediu que eles parassem e a resposta foi um banho de cerveja.

Em outubro, Diogo Cintra decidiu caminhar a noite pela cidade. Foi roubado e, com medo da situação, correu para pedir ajuda. Porém, aqueles que deveriam lhe prestar socorro o relegaram aos chutes e socos.
Em comum, as histórias têm como protagonistas jovens negros e ambas são reais. Aconteceram em cidades distintas do Brasil, o país em que ao menos 92% da população acredita que o racismo existe, mas que somente 1,3% dela se declara racista.

Nas ocorrências, outra particularidade. Para a Justiça, os casos não foram considerados como crimes de injúria racial ou racismo. Para a advogada e pesquisadora em Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (USP) Julia Drummond falta o entendimento do que de fato é o racismo – e suas nuances – por parte dos operadores do direito.

“Eu não acredito que exista uma brecha legal. A lei é bem clara. A gente tem a previsão legal de que o racismo é crime inafiançável e imprescritível e a gente tem a injúria qualificada por motivação racial no Código Penal“, explica Drummond em entrevista ao HuffPost Brasil.

“Mas a tendência, tanto dos delegados quanto dos juízes, é de desqualificar, ou seja, entender que é somente injúria, por falta do elemento racial, ou ainda, decidir que sequer existiu o crime em alguns casos. Mas precisamos entender que o racismo não acontece apenas quando chamamos alguém de macaco.”

Diogo Cintra relatou a violência sofrida em uma publicação no Facebook e deu o seu depoimento à polícia na última terça-feira (21). Para a delegada Gabriela Carvalho Pereira do 1º Distrito Policial, responsável pelo caso, o racismo teria sido “uma impressão pessoal” de Cintra, de acordo com informações do UOL.

“Ele foi indagado se, em algum momento, foi proferida alguma palavra, se foi exteriorizado esse racismo, mas ele disse que escreveu isso no post como uma impressão pessoal dele – inclusive, o inquérito não foi para outra delegacia, especializada”, explicou a delegada.

Já para o juiz do caso de Dandara, que arquivou o processo na última terça (21), “o preconceito está inserido na alma da própria pessoa tida como vítima da expressão”, uma vez que o grupo de jovens não havia cometido qualquer delito.

Judiciário e o racismo

De acordo com Julia Drummond, há um consenso do Judiciário de que a ofensa racial deva ser explicitada em palavras para que os casos sejam investigados.

“A motivação racial para quem entende a dinâmica do racismo é óbvia no caso de Cintra, por exemplo. Mas o Judiciário é muito hesitante em reconhecer o racismo. As decisões se baseiam no mito da democracia racial, porque parte-se do princípio de que as pessoas precisam estar motivadas a injuriar racialmente, ou seja, a pessoa tem a intenção de ofender com base na raça, falando abertamente de raça, para configurar que o crime seja de racismo ou de injúria racial”, explica Drummond.

Lucas Sada, especialista em direito penal e membro do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), argumenta em entrevista ao HuffPost Brasil que os conceitos do Direito são confundidos com os conceitos da sociedade em casos como o do racismo.

“A situação de Cintra é claramente um caso de racismo social. Ele foi desacreditado pela cor da pele e carrega o estereótipo criminal pelo fato de ser negro – nunca será visto como a vítima, mas sempre como autor de crimes. Porém, do ponto de vista penal, não quer dizer que tenha existido um crime de racismo tipificado perante a lei, já que elementos de raça não foram verbalizados. O que não torna a violência menos grave.”

Diferença entre injúria racial e racismo

Embora impliquem em penas semelhantes e tenham como objetivo alcançar a igualdade entre os indivíduos, prevista pela Constituição Federal, os conceitos de injúria racial e crime de racismo são diferentes.

O primeiro está previsto no Código Penal e consiste em “ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem”. A injúria acontece quando é direcionada a uma pessoa específica, como ocorreu no caso do goleiro Aranha, do Santos, quando foi chamado de “macaco” pelos torcedores do Grêmio, e é prescritível em um prazo de oito anos. A pena varia de acordo com o caso, podendo resultar em multa ou reclusão de um a três anos.

Já o crime de racismo, amparado pela Lei n. 7.716/1989, é considerado mais grave, pois tem como objeto a coletividade, um grupo com quantidade indeterminada de indivíduos, “discriminando toda a integralidade de uma raça”.

Ele acontece quando um grupo de pessoas é proibido de entrar em um determinado espaço, ou ainda, quando candidatos não são contratados em um emprego por serem negros. Também é racismo quando se nega ou impede o ingresso de determinado aluno em determinada escola. Ainda, quando estabelecimentos comerciais se negam a atender um cliente negro.

O crime de racismo é inafiançável e imprescritível. Isso quer dizer que uma pessoa pode ser punida muito tempo depois da infração, ao longo de toda a sua vida. As penas previstas, a depender do caso, variam de um a cinco anos de prisão.

Drummond defende a ampla aplicação da lei do racismo e não da injúria racial, uma vez que, para ela, a segunda tende a minimizar as violências sofrida. Ela argumenta que o Brasil ainda tem um longo caminho na responsabilização de crimes de ódio.

A negativa do racismo é um problema porque as pessoas negras e aquelas que sofrem com os crimes de ódio não tem nenhuma repercussão do Estado.

Para isso, a advogada defende que haja uma “conscientização” dos operadores da lei, bem como a formação dos juízes e delegados sobre as nuances e dinâmicas do racismo.

“Precisamos aumentar a inserção de pessoas negras no Judiciário, este poder que é em sua maioria branco. E também precisamos fomentar o fim do racismo institucional, porque ele não afeta só a inserção de parte da população nas instituições, mas todo um esquema de hierarquias e ascensão desses profissionais. Não é questão de cotas, mas de assegurar um direito”, argumenta.

Para Sada, no entanto, os casos como o de Cintra e Castro são ilustrações de como a solução para os crimes de ódio escapam o Direito, pois durante muito tempo violências como estas foram naturalizados na estrutura social.

“Sou crítico ao sistema penal e não acredito nele como mecanismo de resolução das opressões. O racismo é gravíssimo, mas a sua criminalização não é suficiente. O Direito sozinho não altera a realidade”, explica o advogado. “É papel das políticas públicas, e não só da legislação, debater o racismo e a seletividade da justiça criminal. Todo o movimento sobre igualdade racial que tem se intensificado tem um potencial muito mais transformador.”

Fonte: Huffpost